terça-feira, 12 de junho de 2007

O Centro Histórico de Salvador: economia cultural entre o local e o global

por Wagner Vinhas *

Estamos acostumados a citar a cultura como uma riqueza de um povo, uma teia de significados que orienta os valores e as crenças na (re)definição das identidades culturais e que são refletidas através do sentimento de pertencimento a uma comunidade. A cultura, neste sentido, se apresenta também como uma força política capaz de organizar um grupo social em torno de interesses mais ou menos comuns. A cultura, dessa forma, pode ser vista como um sistema interconectado e interdependente, o que George Yúdice denominou de ecologia cultural, com recursos renováveis e não renováveis.

Nesta perspectiva ecológica, com contribuições importantes nas últimas décadas para a nossa forma de perceber os sistemas naturais e sociais, existe um debate que busca rever o conceito de riqueza. Segundo Elaine Bernard, diretora da Trade Union Program de Havard, a natureza é vista como riqueza apenas quando apropriada para fins econômicos privados. No entanto, nesta perspectiva de repensar o conceito, os recursos naturais por si mesmos são riquezas de toda a vida sobre o planeta. A água que corre nos rios, a diversidade biológica nas matas e florestas, entre tantos outros, não possuem valor apenas quando transformados em mercadoria pelo capitalismo. A riqueza contida na natureza não está restrita à lógica de um sistema de produção, porque o seu valor está ligado à produção de toda a vida sobre o planeta. Neste sentido, a cultura enquanto uma ecologia cultural e com inter-relações na produção da vida dos grupos sociais e étnicos, precisa ser pensada a partir desta mesma noção de riqueza, através da sua importância para a vida em sociedade e não apenas como uma mercadoria a ser comercializada.

Na produção de bens culturais, encontramos artistas, produtores, empresas etc., compondo a cadeia produtiva de uma cidade, estado, região ou nação. No entanto, existem problemas na retro-alimentação desse sistema que funciona como uma cadeia produtiva, principalmente, quanto se trata do retorno de conhecimentos, recursos financeiros ou bens acabados aos chamados artistas populares. A população que está nas feiras ou nas ruas, produzindo o que denominamos por cultura espontânea ou popular, também participa de modo periférico na produção dos bens sociais, mesmo que seja um importante elemento na (re)produção da cultura nacional.

Nas últimas décadas, particularmente, a partir da década de 1950, ocorre um forte movimento em torno da estruturação de bens simbólicos e culturais. Inserido nesta dinâmica da produção da economia global, temos a cidade de Salvador, representada principalmente pelo seu Centro Histórico. A configuração atual do Centro Histórico de Salvador (CHS) pode ser pensada em termos de preservação arquitetônica e encenação das práticas culturais, como também, através da dinâmica cultural oculta nos recantos periféricos do CHS. O efêmero ocupa os espaços reinventados pelas políticas culturais e que continuamente modificam “o local da cultura baiana” para atender a agenda de festividades. As manifestações que participam da reinvenção constante do CHS não conseguem abarcar a diversidade existente na cidade de Salvador. A negritude, “vivamente” presente no CHS através das encenações e espetacularizações, ocupa nos demais bairros da cidade os locais periféricos e com expressiva concentração da população negra. Essa visível reclusão do negro baiano na periferia de Salvador se reflete na dinâmica destes bairros e distantes dos circuitos culturais.

Os últimos dados revelam que o soteropolitano freqüenta pouco o CHS para estar com amigos ou familiares. Os dados não representam fatores isolados e sim a pouca atenção dada por parte do poder público no que se refere à relação dos habitantes com o espaço social, negligenciado inclusive o seu potencial educativo. Os inúmeros aparelhos do CHS mantêm pouca ou nenhuma relação com a população que ali reside ou freqüenta. As instituições como Museu Casa do Benin, Fundação Jorge Amado, Fundação Gregório de Mattos, entre tantos outros espaços, poderiam ampliar suas atividades às camadas populares, promovendo debates, abrindo seus acervos, revivendo a cultura baiana através da diversidade de meios e que apenas estão disponíveis para usufruto das camadas privilegiadas da cidade. O que nas últimas décadas permitiu ao CHS uma maior visibilidade no cenário nacional e internacional foi o legado construído pelas práticas culturais que surgiram através dos praticantes de capoeira, afóxes, repentistas, blocos carnavalescos, literatura de cordel, entre tantos outros. Contudo, o modelo adotado acabou sufocando essa diversidade, favorecendo apenas uma pequena representação dessa totalidade. Os mestres de capoeira, por exemplo, conseguem manter a prática no CHS com pouco ou nenhum apoio das políticas culturais, mesmo sendo a capoeira hoje responsável por uma maior difusão da Bahia em âmbito nacional e internacional. Mesmo sem políticas que favoreçam a prática, a capoeira sobrevive em condições adversas não apenas no CHS, demonstrando sua importância para a dinâmica local e independente da sua inclusão como bem de consumo. Neste sentido, as práticas culturais são uma riqueza para uma parcela da população e que se reconhece dentro de uma diversidade de práticas existentes. A prática da capoeira fala muito sobre o modo de ensinar e de aprender (educação), dos valores e das crenças e da forma de estabelecer relações sociais entre seus praticantes.

Pensar a Economia Cultural, numa cidade com as potencialidades de Salvador, não basta que seja em termos de mercantilização da cultura. É necessário estabelecer estratégias para manter viva a produção dos bens simbólicos e culturais. Neste sentido, a presença das camadas populares parece ser fundamental. É preciso pensar políticas que possam efetivamente democratizar, preservar e alimentar as dinâmicas culturais da cidade, devolvendo conhecimentos, trocando experiências, redistribuindo a renda, para que o sistema não morra de asfixia em algum ponto estrangulado. Nos últimos anos, a visitação e a permanência do turista na cidade caiu rapidamente, o que parece ser um reflexo do modelo adotado para pensar o espaço social e as manifestações culturais, inclusive nos demais espaços sociais da cidade. A elitização, aliada a mercantilização do CHS, demonstra que a ausência da espontaneidade popular é danosa a (re)produção das manifestações culturais, sugerindo que a relação da comunidade com o espaço é um fator de (re)criação do próprio espaço.

O professor Bruno César Cavalcante, da Universidade Federal de Alagoas, em palestra proferida no III ENECULT, ocorrido neste ano em Salvador, afirma que um dos grandes desafios para as políticas de diversidade cultural é a democratização do conhecimento ou retorno às camadas populares de um conhecimento que temos nos apropriado de formas diversas. Conforme Cavalcanti, diferente dos artesões europeus, por exemplo, no Brasil a produção artesanal ocorre sem que os conhecimentos necessários a produção, distribuição e acesso ao mercado sejam de fácil acesso. A ausência da participação do artesão na produção de conhecimentos não permite que ele elabore de modo adequado um conjunto de saberes para lidar com o mercado.

É um desafio para a Economia Cultural, pensada como um sistema vivo de inter-relações entre pessoas, estilos, infra-estrutura, bens etc., ampliar o acesso a todos os indivíduos que participam da produção cultural no seu sentido mais amplo. A Declaração da Diversidade Cultural da Unesco ao afirmar que a diversidade cultural como fator de desenvolvimento, não envolve apenas o aspecto econômico, mas existencial, intelectual, afetivo, moral e espiritual, nos permite avançar no sentido de propor estratégias através de uma perspectiva sistêmica, ou seja, através de dimensões interconectadas e interdependentes onde a busca do equilíbrio não está em um único aspecto, mas nas conexões que ligam os seus diversos.

(*) Wagner Vinhas é cientista social com pesquisa em andamento no Centro Histórico de Salvador.

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