sexta-feira, 8 de junho de 2007

Cultura X Pobreza

A criatividade é capaz de movimentar a economia, reduzir desigualdades e fortalecer a auto-estima das pessoas

Eliana Giannella Simonetti*


Uma forma de retratar o planeta, hoje, é a seguinte: em cerca de 200 países vivem cinco mil grupos étnicos – a maior parte deles minoritários. Há outra: Hong Kong, ilha de 6,5 milhões de habitantes, produz anualmente 171 bilhões de dólares. Na Tanzânia, onde vivem 32 milhões de pessoas, a produção é infinitamente menor: 6,9 bilhões. A Suécia tem mais ou menos a mesma área arável de Cuba, recursos naturais semelhantes, clima mais ingrato e menos gente. Mas o PIB sueco é onze vezes maior do que o cubano. A diferença em termos de renda per capita entre uma das mais ricas nações industriais do mundo, a Suíça, e um dos mais pobres países não industriais, Moçambique, é de cerca de 500 dólares para 1.

Não há receita alguma capaz de resolver tamanha desigualdade com facilidade e em prazo curto. Cinqüenta estudiosos de todas as especialidades (entre eles o historiador David Landes e os economistas Jeffrey Sachs e Francis Fukuyama) reuniram-se num debate em busca das razões desse problema na universidade americana Harvard. Concluíram que, além dos motivos conhecidos, como escassez de riquezas naturais, governos com administrações desequilibradas e falta de oportunidades de negócios, os países pobres sofrem por uma razão menos palpável: eles têm uma espécie de cultura da pobreza. "Mais do que qualquer dos fatores que influenciam o desenvolvimento dos países, a cultura é a principal explicação do por quê alguns se desenvolvem mais rápida e homogeneamente que outros", diz o economista Lawrence Harrison, professor em Harvard e autor do livro Subdesenvolvimento É um Estado de Espírito. A questão é como fazer para romper o dique entre nações ricas e pobres, porque de uma forma qualquer ele precisa ser rompido. "A paz e a prosperidade do planeta dependem do bem-estar de todos", diz David Landes, professor de história e economia política em Harvard e autor do livro A Riqueza e a Pobreza das Nações.

O Brasil investe 22% do PIB em programas sociais. É muito dinheiro, mas não resolve os problemas. Primeiro, porque grande parte dos recursos se perde no meio do caminho e não chega aos necessitados. Segundo, porque o assistencialismo não produz gente com mais iniciativa, mais criatividade, maior habilitação para o trabalho. O investimento em capital humano pode ser muito mais barato e gerar melhores resultados. E aí entra a economia da cultura. Roupas, enfeites, objetos de decoração, idiomas, ritmos e sons formam uma colcha de retalhos de valor intangível que vem adquirindo importância crescente com o aumento do comércio e das relações entre os povos. A questão, que só recentemente começou a chamar a atenção dos brasileiros, está em pauta nos países desenvolvidos há décadas. Como chega atrasado para a festa, o Brasil tem de se apressar, ou continuará sendo um grande exportador de produtos agrícolas e um dos países que apresentam os piores indicadores de desenvolvimento humano do planeta.

Criatividade, alegria, talento, e disposição para empreender são qualidades que não faltam ao brasileiro. Com esse caldo seria possível fazer um molho substancioso. Não se faz. Informações da Organização Mundial do Comércio (OMC) dão conta de que o faturamento das indústrias criativas no mercado internacional duplicou nos primeiros três anos do século XXI. Segundo os cálculos dos especialistas da Organização das Nações Unidas (ONU), a economia criativa, que envolve setores tão díspares como teatro, artesanato, televisão, cinema, publicidade e desenvolvimento de programas de computador, é responsável por 7% das riquezas produzidas no mundo. Como cresce rapidamente, logo chegará aos 10%. Essa é uma média estatística, e esconde disparidades.

De acordo com a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), apenas três países, o Reino Unido, os Estados Unidos e a China, produzem 40% dos bens culturais negociados no planeta – entre eles livros, CDs, filmes, videogames e esculturas. As vendas da América Latina e da África, somadas, não chegam a 4%. Cinco sextos da população mundial – uma multidão de um bilhão de pessoas – vivem em países em desenvolvimento ou absolutamente pobres, e não conseguem aproveitar as oportunidades que se apresentam. No Brasil, o PIB Cultural contribui com cerca de 1% da riqueza nacional. Pelos cálculos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a América Latina deixa de ganhar 500 milhões de dólares por ano em direitos autorais. Ou seja, os países emergentes ainda não conseguiram potencializar a cultura para gerar renda e empregos.

Um professor argentino, diretor do programa de estudos sobre cultura urbana na Universidade Autônoma Metropolitana do México, Néstor Canclini, coleciona informações interessantes sobre o poder da indústria criativa dos países ricos, e a absoluta ignorância das pessoas acerca da riqueza cultural alheia. Algumas delas são as seguintes. A indústria audiovisual é a maior exportadora dos Estados Unidos. Fatura 60 bilhões de dólares por ano. Todos os brasileiros, trabalhando o ano inteiro nos mais variados setores da economia, conseguem produzir apenas dez vezes mais do que essa pontinha da indústria americana. Desde a década de 1990, seis empresas transnacionais tomaram conta de 96% do mercado mundial de música. Compraram pequenas gravadoras e editoras em países latino-americanos, africanos e asiáticos. No que se refere ao cinema a situação é ainda mais chocante. Mais de 90% das telas norte-americanas só exibem filmes feitos no próprio país. O americano comum, portanto, não conhece o que se faz no estrangeiro. E o que se produz, na verdade, é pouco – 85% dos filmes exibidos em todo o planeta brotam de Hollywood. Mesmo países europeus como França e Itália, que no passado foram reconhecidos pela qualidade de suas fitas, andam lutando para se manter à tona.

Há alguns anos Inglaterra, Canadá, Austrália e França, entre outros, descobriram que, na era do conhecimento, quanto mais diversificada uma sociedade, mais rica ela pode ser. Na Inglaterra, a indústria cultural é mesmo uma indústria, montada para criar empregos e promover o crescimento econômico. Na França existe uma preocupação diferente. Fala-se em economia cultural e em sua importância para a redução das desigualdades sociais e para o fortalecimento da identidade nacional. Ali, o departamento de pesquisas do Ministério da Cultura foi criado em 1959. Observa de perto todos os setores da vida cultural do país para instruir decisões e apontar caminhos para a solução dos problemas detectados. Os conhecimentos acumulados em quase meio século estão organizados por áreas: a disponibilidade de financiamento, a economia da cultura; as estatísticas; e estudos sobre o comportamento dos produtores e dos consumidores de bens criativos. Os ingleses perceberam cedo que num ambiente globalizado, em que os produtos tendem a se tornar commodities, a diferenciação é fundamental. Isso mais de duas décadas após a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad) ter estabelecido que os anos 1980 seriam dedicados ao desenvolvimento cultural.

A causa vem sendo abraçada por organismos internacionais. Em 2002 o pessoal da Unesco parece ter descoberto uma maneira de sensibilizar o mundo. A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural afirma: "Frente às mudanças econômicas e tecnológicas atuais, que abrem vastas perspectivas para a criação e a inovação, deve-se prestar particular atenção à diversidade da oferta criativa, ao justo reconhecimento dos direitos dos autores e artistas, assim como ao caráter específico dos bens e serviços culturais". A declaração tratou também da liberdade de circulação de idéias, da identidade dos povos, mas o argumento econômico foi fundamental.

Na 11ª reunião da Unctad, realizada em São Paulo em 2004, abriu-se espaço para o debate sobre o papel das chamadas indústrias da criatividade no desenvolvimento. O resultado foi a proposta de criação de um Observatório Internacional para o setor, com o objetivo de apoiar os formuladores de políticas públicas e outros interessados, encorajando a capacitação, a valorização da diversidade cultural e a construção de redes de distribuição e comércio. Os movimentos, desde então, não pararam. Em abril de 2005 ocorreu em Salvador, na Bahia, um Fórum Internacional. Ali foi lançada a pedra fundamental do Centro Internacional das Indústrias Criativas, onde se concentrarão a pesquisa e os dados sobre o setor em todo o mundo. Outro centro foi criado na Ásia, onde ocorreu encontro semelhante. A cidade de Xangai ficou encarregada de promover uma exposição internacional em 2007. Com essa perspectiva, e sabendo que hospedarão os Jogos Olímpicos em 2010, os chineses criaram uma universidade para formar gente capaz de pensar em políticas de maneira ampla e integrada, envolvendo economia, finanças, educação, arte e questões sociais. Xangai pretende ser a capital cultural do mundo.

No relatório sobre desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) de 2004, há uma citação de uma frase do arcebispo sul-africano Desmond Tutu: "O desenvolvimento humano diz respeito, antes de tudo, a dar condições às pessoas para decidirem o tipo de vida que querem ter – e provê-las das ferramentas e oportunidades para que façam suas escolhas". Aí está o desafio do momento.


* Eliana Giannella Simonetti é jornalista e historiadora. O texto é uma compilação resumida de reportagens publicadas na revista Desafios do Desenvolvimento, do Ipea e do Pnud (www.desafios.org.br).

2 comentários:

ana dumas disse...

Muito legal o artigo, bastante esclarecedor. Acreditar que a relação cultura & economia é herética vem de longe, mas ainda bem que vem caindo por terra. E a hora da "reforma agrária", enquanto não há cercas e cordas no mundo das idéias. É legal ver um Ministério, uma instuição oficial, abarcar uma discussão contemporânea, transgressora, inovadora.
ana dumas

Unknown disse...

obrigado pela partilha. Partilharei tb as ideias que aqui encontrei.

Valeu